Há cada vez mais pais a vigiar os filhos com GPS. Insegurança ou controlo?

Há cada vez mais pais a vigiar os filhos com GPS. Insegurança ou controlo?

Ainda que a funcionalidade de partilha de localização esteja há muito disponível em smartphones e relógios inteligentes, foi com o lançamento da AirTag, um pequeno dispositivo da Apple para localizar objetos, em 2021, que se começou a ouvir falar do controlo de localização dos mais novos. A moda, tal como outras que lhe antecederam, não fica livre de críticas. Psicólogos parecem ser unânimes sobre evitar o seu uso, mas há ainda a pesar a questão ética e legal.

Segundo episódio. Quarta temporada. Série “Black Mirror”. A trama conta a história de uma mãe e de uma filha, mas o foco é a nova tecnologia que promete revolucionar a parentalidade. Através de um chip, colocado na criança, os pais conseguem monitorizar onde esta se encontra, o que está a ver e até censurar o que observa e sente. “Arkangel” é uma distopia que parece não deixar dúvidas quanto à ética e que, provavelmente, repulsa qualquer um que a assista. Mas estamos assim tão longe de uma realidade em que o controlo parental é absoluto? Pelo menos temos dado alguns passos nessa direção.

Ainda que o seu uso original não seja para esse fim, os AirTag (ou outros semelhantes de outras marcas), um pequeno dispositivo redondo, do tamanho de uma moeda de dois euros, que permite, através do smartphone, detetar a sua localização, têm sido utilizados para, presas à mochila, à carteira ou à própria roupa da criança, fazer uma monitorização parental dos mais novos. O uso é tão comum que é cada vez mais normal encontrar, tanto na Internet como em lojas generalistas, alfinetes ou braceletes próprias para estes dispositivos com cores ou desenhos infantis.

Se esta utilização dos dispositivos de localização é usada para casos esporádicos, por exemplo, apenas consultada a localização quando a criança está efetivamente perdida, ou se o controlo é feito de forma regular, para vigiar o caminho para casa, por exemplo, não se sabe. Em fóruns, principalmente norte-americanos, há quem admita usá-lo para ambos os fins. A nível académico, pouco se sabe, uma vez que se trata de um fenómeno recente. A ética deste tipo de controlo ficará a cargo de cada um. Ainda assim, há diversos especialistas que têm proferido sobre o tema.

Comecemos pelo lado legal. Uma vez que as Nações Unidas preveem um rol de direitos das crianças, estaremos a infringi-los ao utilizar métodos de controlo como este? “Quando pensamos no seu uso para questões de segurança, pensamos em crianças pequenas, que não têm idade para ter um telemóvel ou um relógio inteligente”, começa por esclarecer Cristina Dias. A presidente da Escola de Direito da Universidade do Minho e especialista em Direito da Família entende desta forma que o uso deste controlo de localização tem sido adotado no caso de crianças pequenas, que não têm ainda consciência de situações de perigo, de como se defender ou entendimento suficiente para dar consentimento sobre aquele (ou outro) controlo.

Utilização consentida

No caso de uma criança de seis a oito anos, quer pela utilização deste aparelho quer pelo controlo através do telemóvel, é preciso o consentimento da criança? “Não me parece”, afirma Dias, que considera não estarem em causa, nestes casos, os direitos da criança, “desde que tudo isto seja exclusivamente utilizado no âmbito das atividades parentais”.

Se pelo lado legal não parece haver dúvidas, o mesmo não se poderá dizer da Psicologia. Natália Fernandes, investigadora no Centro de Investigação em Estudos da Criança, começa por definir o “direito à privacidade como essencial para construir a confiança”. “Se as crianças se sentirem vigiadas, podem estar criadas condições para que a relação com os pais fique minada.” A especialista realça que não se tratam, na maioria, de consequências a curto prazo, mas que o controlo excessivo pode ter uma influência ao longo do crescimento.

“É algo que na Psicologia da Infância se tem vindo a discutir, principalmente desde a década de 1990, que é o modo como a criança, sujeito de direitos, tem formas de participar na sua própria proteção.” Natália Fernandes acredita que os mais novos devem ter uma participação ativa no seu desenvolvimento, incluindo no que concerne à proteção. “Se incutirmos a criança com a noção dos riscos e de como enfrentá-los, ela será capaz de se adaptar às situações menos agradáveis e que, muitas vezes, os pais prefeririam que não acontecessem.” A realidade, realça, é que são os riscos, de forma mediada, que contribuem também para a formação de caráter.

“Parece-me muito mais importante, até em termos civilizacionais, investirmos em relações de diálogo, em que os mais novos percebem quais os perigos e como reagir, são dotados de estratégias para se proteger, e que sabem que podem e devem partilhar qualquer situação desconfortável com um adulto, sejam pais, professores ou outros.” Em suma, Fernandes acredita ser “muito mais eficaz e respeitador dos seus direitos” optar pela educação para os riscos e estratégias do que preferir o controlo absoluto.

Pais inseguros. Filhos inseguros

Paulo Dias, neuropsicólogo com trabalho dedicado à infância, corrobora as ideias da investigadora. “Defendo cada vez mais que os pais têm de entender que os filhos não são propriedade deles.” Um dos papéis da parentalidade, continua, “é de educação dos próprios filhos e de ajudá-los no crescimento e desenvolvimento”. Não de controlo obsessivo. “Quando olhamos para o uso destes dispositivos, e já trabalhei na questão das trelas, também elas polémicas, estamos perante uma parentalidade insegura.” E, conclui, “pais inseguros constroem insegurança nos filhos”.

E porque é que tem crescido a parentalidade insegura e a necessidade de controlo? Por diversas razões, aponta Paulo Dias, entre elas as redes sociais (que abordaremos adiante), mas, principalmente, por “vivermos, fruto da sociedade, numa parentalidade imatura, em que há dificuldade dos próprios pais em definir quais são os objetivos da sua educação, uma vez que procuram incessantemente colmatar todo o tipo de falhas de forma a preencher a própria insegurança e falta de confiança em ser bons pais”.

Ainda que o seu uso continuado e como “regra” esteja associado a diversas falhas no desenvolvimento emocional da criança, Paulo Dias não descarta totalmente o seu uso, acreditando que podem ser interessantes em casos excecionais. “Pense-se na recente enchente de milhões de pessoas na Jornada Mundial da Juventude ou das praias repletas de turistas no Algarve – esta localização pode ajudar a evitar situações de pânico quando a criança é perdida de vista.” Ainda assim, o profissional acredita que é benéfico apostar, antes, em sistemas como o criado pela Polícia de Segurança Pública, com a distribuição de pulseiras para as crianças com informações sobre os pais. Evita-se a parte do controlo excessivo, mantendo a questão da segurança. “O problema é fazerem da exceção uma regra, monitorizando os filhos a toda a hora, tendo acesso aos filhos a qualquer momento.”

Efeito contrário

Este controlo pode ainda ter um efeito contraproducente, uma vez que a criança acredita estar protegida constantemente pelos pais, negligenciando a sua própria ação. Poderá começar a ser comum o pensamento: “Os meus pais vão aparecer se me acontecer algo, por isso não preciso de fazer nada”. Natália Fernandes considera que “é mais eficaz confrontarmos as crianças com os perigos, consoante a sua faixa etária, e dotando-as de mecanismos para os enfrentar”. “Acho que poderemos estar a abandonar esta necessidade de diálogo e de ensino através da passagem de conhecimento quando confiamos na omnipresença das tecnologias.”

Acrescendo a todas as consequências negativas já relatadas, Natália Fernandes nota ainda um perigo: o facto de as crianças serem cada vez mais competentes com as tecnologias e poderem ter conhecimentos para as desligar.

Mas voltemos à questão legal. Ainda que Cristina Dias, do Direito da Família, não veja problemas na utilização destes mecanismos, realça que assim é no caso de uma família em ambiente materno-filial normal, com o puro intuito de vigilância parental. “É evidente que a resposta não pode ser linear quando estamos perante um caso de divórcio, rutura da relação ou até litígio entre os pais, onde se faz utilização do controlo para outros fins que não o educacional.”

Se no caso dos mais novos este controlo pode ter implicações no desenvolvimento emocional, a médio e longo prazo, quando se fala de idades mais avançadas, como a pré-adolescência ou a adolescência, mais complicações se podem somar. “Nestas fases há sentimentos de ressentimento e este tipo de controlo será lido como uma invasão à liberdade e privacidade, deixando a relação com os pais comprometida e, acima de tudo, ser perigosa por poder incitar à raiva e à revolta, levando efetivamente a comportamentos perigosos”, entende Paulo Dias, neuropsicólogo especialista em crianças e adolescentes das Clínicas Dr. Alberto Lopes.

Consequências de futuro

A longo prazo, o especialista em Psicologia da Infância alerta que não são ainda conhecidas as consequências que advirão deste tipo de comportamento. “Não há estudos que nos falem deste tipo de comportamento de modulagem mas, sabendo a Psicologia que as crianças se vão moldando pelos comportamentos dos pais, temo que podemos estar a criar a ideia de que controlar o outro é fácil.” Ou seja, crianças que crescem habituadas a ser monitorizadas poderão, no futuro, ser adultos que, além de replicar esse comportamento nos seus filhos, banalizarão a monitorização entre adultos.

Cristina Dias, à parte da questão legal, alerta que a própria marca criadora do modelo mais conhecido destes dispositivos, a Apple, veio, aquando do início desta moda, realçar em comunicado que o seu uso não se destina a animais ou crianças. Um dos fatores a ponderar é o tamanho do objeto, que representa um risco para os mais novos, uma vez que pode ser facilmente engolido.

Para Paulo Dias, “esta moda” (e outras semelhantes) é fruto da Internet e das redes sociais. “Há muitos pais que utilizam estes dispositivos sem necessidade, não avaliando o contexto em que vivem.” É diferente educar uma criança em Portugal ou num país em que a taxa de raptos ou de violência é elevadíssima. “O meu filho nunca me deu razões, mas vou usar porque alguém me recomendou ou porque li na Internet que previne isto e aquilo.” Parece ser este, na opinião do psicólogo, o pensamento dos pais que utilizam estes métodos. “A comparação social trazida pelas redes sociais não afeta só a questão da autoestima física ou o desenvolvimento dos nossos adolescentes, tem também impacto no comportamento dos adultos, muitas vezes sem estes terem essa consciência.”

Entrevista Noticias Magazine por Sara Sofia Gonçalves (https://bit.ly/3sBqSxp)

Paulo Dias – Neuropsicólogo e Hipnoterapeuta na Clínica Dr. Alberto Lopes

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